Boa leitura para     aprofundarmos a consciência dos preconceitos sociais de nossas elites -     econômicas, políticas, intelectuais e artísticas - em relação ao povo     brasileiro. Esses preconceitos enraizaram-se em 500 anos de colonização     escravocrata, segregadora, elitista e perversa e continuam vivos na mente     de nossas elites, reproduzindo-se, consciente ou     inconscientemente, em grande parcela de nossa classe média, que     às vezes até se acha progressista e vota no PT, mas torce o nariz para     o pobre do lado, ou trata com arrogância o infeliz que lhe serve, tão logo     consiga alcançar um bem qualquer que o diferencie do outro. Não     nos enganemos, a caminhada por um mundo mais justo e igualitário é lenta e     cheia de ciladas. Um abraço. Hermano   
 Caetano e os analfabetos 
      Posted: 06 Nov 2009 04:24 PM PST
      A história ensina a não confiar nos artistas. A quantidade de artistas que     aderiram às teses de Mussolini, alguns mesmos tornando-se verdadeiros     heróis do Il Duce, como o poeta D'Annunzio, já mostra que um artista entende     tanto de política quanto de matemática. Por acaso, há artistas que entendem     de política, como há artistas que talvez entendam de matemática; mas     trata-se, por assim dizer, de coincidências. 
      Nosso alegre boêmio, Augusto Frederico Schmidt, por exemplo, apoiou o golpe     de Estado de 1964, ou pelo menos foi isso que os jornais deram a entender,     quando publicaram manchete com uma frase sua favorável ao regime. Céline     teve que esperar alguns anos antes de poder retornar a França, pois havia     sido condenado à morte por causa de sua posição dúbia - em alguns momentos     até favorável - quanto ao nazismo; e o incomparável Knut Hansum, que     escrevera o romance mais doloroso do século XX, A Fome (que traz a     descrição mais humana, mais viva e mais autêntica da fome, segundo Josué de     Castro), filiou-se entusiasticamente ao partido nazista, recebendo,     inclusive, condecorações!
      Portanto, não estranhem quando um grande artista como Caetano Veloso dá voz     a preconceitos tão mesquinhos, como fez na entrevista ao Estadão, na qual     declarou que "votava em Marina porque ela não era analfabeta como     Lula". 
      Dias depois, o "cafona", o "grosseiro", era, pela     enésima vez, recebido pela rainha da Inglaterra, que tinha um sorriso     sincero e admirativo no rosto. O Primeiro Mundo nem sempre foi o mar de     rosas pacífico, limpo e desenvolvido que gostamos de imaginar. Inglaterra,     França e EUA já viveram fome, guerra, miséria, revoluções, e aprenderam que     somente superaram suas dificuldades em virtude da sabedoria, criatividade e     força dos homens simples, dos homens do povo. 
      Afinal, o que é ser "analfabeto" para Caetano? Sua crítica,     aliás, está na boca de muita gente. Há uma consciência de classe muito     específica aqui. Sim, porque, a questão não é saber ler ou não, pois Lula     sabe ler muito bem. A questão é possuir uma determinada cultura, mas qual     é, exatamente, essa cultura? São os clássicos? Lula deveria ter lido a     Ilíada, de Homero? Aí entramos numa situação curiosa. É que Homero era, ele     sim, um analfabeto, e no caso dele, porque, segundo a maioria dos     pesquisadores, o alfabeto grego ainda não fora inventado. Andei lendo     bastante sobre isso, e descobri que uma das teorias mais respeitadas entre     os estudiosos é que a pessoa que inventou o alfabeto grego (que é uma cópia     do fenício, adaptada ao vocabulário grego) o fez justamente para anotar os     versos de Homero. A seguinte cena deve ser imaginada: Homero recitando os     versos para que esse astuto e pioneiro escrivão anote-os, e daí nasce a     literatura ocidental! 
      Não precisamos ir tão longe. Antropólogos e historiadores vem estudando com     muito afinco, desde os anos 60, o poder das culturas populares, baseadas     sobretudo na tradição oral. Pode-se transmitir conhecimentos oralmente? É     claro que sim, pois de outra maneira qual o sentido de pagarmos 120 mil     dólares para ouvir um professor "falar" sobre Platão, numa sala     em Harvard? Não poderíamos, simplesmente, ler Platão no conforto de nossa     casa - e sem gastar os 120 mil dólares?
      As palavras ouvidas e faladas valem menos que as palavras escritas? Bem,     talvez não seja isso o que pretendia dizer Caetano, porque suas letras são     "cantadas" e não "lidas", e não é preciso ter lido     Levi-Strauss para saber apreciá-las corretamente. Caetano expressou uma     noção sobre "etiqueta". Uma visão (embora inconscientemnete, e     mesmo assim indesculpável) um tanto fascista sobre uma determinada forma de     se comportar, de falar, de se expressar, e que inclui o conhecimento, mesmo     que superficial, mesmo que seja apenas um verniz, sobre um cânone. 
      O mundo produziu milhões de livros importantes, e hoje em dia é     virtualmente impossível estabelecer precisamente quais devem ser lidos ou     não. Caetano não leu nem 1% desses livros, assim como Lula. Eu também não     li. Por outro lado, poderia-se acusar Lula de não ter lido Dom Casmurro. De     fato, é um livro fundamental. Mas aí precisamos fazer um interrogatório     detalhado ao presidente, porque corremos o risco de quebramos a cara se ele     responder: "eu li Dom Casmurro. Não gostei muito, mas li." 
      Milhares de brasileiros leram Dom Casmurro, mas permanecem na condição de     "analfabetos" , pois continuam cafonas e grosseiros. Depois ter     cantado em dupla, por tantas vezes, com Júnior (o irmãozinho genial da     Sandy), supreendi-me com esse súbito repúdio de Caetano à estética     cafona... Ah tá, Júnior com certeza não é analfabeto.. . Claudia Leite     também não é analfabeta.. . É de se perguntar, além disso, se Caetano     chamaria Cartola, Pixinguinha e Nelson Cavaquinho de     "analfabetos" , por não possuirem instrução formal e se     comportarem de forma um tanto "cafona". Pixinguinha recebia seus     convidados segurando um copo cheio de cachaça e Cartola, sempre um     orgulhoso e inveterado cachaceiro, trabalhava como flanelinha no centro do     Rio... 
      Porque ainda há milhões de analfabetos de verdade, que não sabem assinar o     próprio nome. Há casos tristes, trágicos, de pessoas que não conseguem     sequer se expressar. Todos conhecemos casos assim, em geral associados às     condições econômicas miseráveis. Há outros, que, apesar de não saberem ler,     desenvolveram admirável capacidade oratória. Há pessoas que lêem muito, mas     não conseguem falar. Meu pai era assim, coitado. Um homem culto, mas que     não conseguia encaixar uma frase em outra. Era uma espécie de analfabeto da fala,     e isso o fazia sofrer muito, porque dificultava a socialização e ele era um     homem que amava muito seus amigos e via-se que ele se esforçava, às vezes,     para superar sua deficiência. Bebia muito em função disso, para tentar se     soltar. Eu herdei um pouco dessa dificuldade e também bebia muito tentando     "destravar" a língua. No colégio, sofria horrivelmente com a     insuperável dificuldade em abordar as meninas,     em comunicar minha admiração por elas. Mas eu acabei superando essas     barreiras, e tornei-me um tagarela quase insuportável.
      Enfim, a humanidade oferece uma heterogeneidade muito grande de saberes     linguísticos. Neste quesito, acho que Caetano, se tivesse a oportunidade de     reelaborar suas colocações, aceitaria que Lula é um mestre, e não apenas no     Brasil. A sensibilidade linguística de Lula é reconhecida internacionalmente.     Seria desonesto negar os fatos, e a popularidade de Lula prova isso. A     própria oposição política, não querendo dar o braço a torcer sobre a     qualidade da sua capacidade administrativa, atribui a popularidade de Lula     exclusivamente à sua técnica verbal. 
      Então de que analfabetismo fala Caetano? Voltamos ao cânone. Caetano tem um     cânone na cabeça. São os livros que ele mesmo leu, e que ele considera,     preconceituosamente , que todos deveriam ler, se querem ser inteligentes.     Há também a questão do comportamento. Em outras entrevistas, Caetano     admitiu, muito sapecamente, que adora o jeito 'classe-média' de ser, como     fazer comprar no supermercado Zona Sul, etc... Daí voltamos àquele repúdio     sanguíneo ao sindicalista barbudo, grosso, cachaceiro, que não sabe segurar     um garfo e faca, com quem não podemos conversar sobre vinhos franceses...
      Eu conheço bem esse preconceito tolinho, esses olhos que brilham quando     falamos em Marcel      Proust , essa admiração canina por um diploma. O irônico     de tudo é que a literatura autêntica nasce da vida, e os escritores vão as     ruas estudar a personalidade de indivíduos como Lula para se inspirarem.     Afinal, há os que escrevem, há os que lêem, e há os que inspiram livros.     São os líderes políticos, os guerreiros, revolucionários, chefes sindicais,     bandoleiros famosos. 
      Outro ponto que me veio à cabeça, quando li essa entrevista do Caetano, foi     sobre Sancho Panza, o astuto escudeiro de Don Quixote. Sancho é uma figura     fundamental no clássico de Cervantes, e até hoje talvez não tenha merecido     a devida atenção. Lembrei de Sancho porque Lula é uma espécie de Sancho     Panza da política. É um homem do povo que simula uma simplicidade muito     maior do que a que realmente possui. Sancho Panza é muito mais prudente,     esperto e lúcido do que seu patrão. Don Quixote é um bem-intencionado, um     valente, um culto, mas é um indivíduo completamente destrambelhado, um     louco. Sancho Panza é sua maior ligação com a realidade. E Sancho é leal e     corajoso. 
      Outra figura muito parecida à Sancho Panza é Sam Weller, o empregado do     Sr.Pickwick, no admirável romance de Charles Dickens. O escritor publicava     os capítulos num folhetim. Quando introduziu Sam, houve um êxito     instantâneo. Sua inserção no quinto capítulo da narrativa alavancou as     vendas de forma estrondosa: do quarto número foram tirados 400 exemplares,     após o surgimento da figura, a tiragem saltou para 400 mil antes mesmo do     vigésimo capítulo.
      Hoje poucos leram esse romance, o primeiro do escritor inglês. É um romance     absurdamente hilário. As trapalhadas do Sr.Pickwick são de fazer qualquer     um morrer de rir. Tão diferente das xaropadas melancólicas que Dickens irá     escrever depois! Pois bem, o Sr.Pickwick resolve contratar um empregado     para o ajudar em suas viagens pela Inglaterra e encontra Sam. O rapaz se     revelará o verdadeiro "cérebro" do romance. É ele que inventa os     planos mirabolantes e sempre bem sucedidos para tirar seu chefe das mais     incríveis enrascadas. Além disso, possui um humor incomparável, e não     economiza-o em momento algum. A genialidade de Sam retrata a admiração dos     britânicos pela sabedoria popular, e explica a simpatia franca e humana com     que a rainha Elisabeth recebe Lula toda a vez que o presidente põe os pés     na ilha. Em toda      Europa , a cultura (entendendo aí o comportamento, os modos,     a maneira de falar) dos trabalhadores é respeitada com quase     reverência. Na França, milhares de aristocratas tiveram suas cabeças     cortadas por muito menos que entrevistas como essa de Caetano. Nos Estados     Unidos, a criatividade do homem do povo é honorificada constantamente em     filmes e livros. 
      Pois a cultura "livresca" que Caetano e grande parte da classe     média brasileira prezam como condição mínima para uma pessoa pertencer à     boa sociedade, para ser um não-analfabeto, implica também em matar a espontaneidade     natural, aquela graça original, a força, a virilidade. Tantos historiadores     já escreveram sobre isso, sobre a auto-censura a que o homem civilizado é     sujeito, causa de tantas neuras e debilidades psíquicas! Afinal, qual o     objetivo do ser humano? É ser um indivíduo com algumas leituras, ou mesmo     um gênio da poesia, como D'Annunzio, mas que defende o fascismo? É ser um     homem culto, porém sem graça, sem coragem, e broxa? 
      É muito difícil ser um homem inteiro, e conciliar o desenvolvimento pleno     de todas as nossas faculdades físicas e psicológicas com uma participação     criativa na sociedade. Muitos dizem que essas coisas estão ligadas, e que a     debilidade psicólogica tem origem numa relação doentia e medrosa com o     ambiente social. Eu acredito nisso. Gosto de participar da vida política do     mundo porque sinto-me mais forte quando o faço. Sinto saúde. É uma relação     de parceria. Eu ajudo (ou tento ajudar) o mundo e o mundo me ajuda. 
      Voltando ao analfabetismo de Lula, as pessoas como Caetano deveriam entender     que o conhecimento deriva-se não apenas dos livros, mas da observação dos     homens, superação das dificuldades, conversas noturnas, amor, casamento,     sexo. Muitas pessoas querem encontrar nos livros o que talvez encontrassem     numa boa conversa de botequim, ou simplesmente num passeio solitário pelas     ruas. Muitas firulas psicológicas podem ser resolvidas com um saudável     mergulho na vida, e a política, muitas vezes, proporciona essa aproximação     com as forças primevas da sociedade. Esse conhecimento é genuíno. É tão     válido quanto qualquer máxima filosófica. O próprio Kant entendia isso     quando abre a sua obra-prima, a Crítica da Razão Pura, dizendo que todo e     qualquer conhecimento nasce da experiência. E o que importa ao conhecimento     são os frutos. De que adianta ler muitos livros e ser um idiota     preconceituoso, ou um medíocre inútil e invejoso? Se Lula     conseguiu se tornar um estadista invejável, admirado internacionalmente,     dono de uma popularidade inédita no Brasil e no mundo, é porque ele colheu     conhecimentos em algum lugar, não importa onde, processou-os, e     converteu-os em vida, em talento, em sucesso, em redenção econômica e     social para milhões de brasileiros. Se mesmo assim ele for considerado um     analfabeto, então viva os analfabetos!     Acesse oleododiabo. blogspot. com  | 
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