Delúbio Soares (*)
“Todo artista tem de ir aonde o povo está”
(Milton Nascimento)
Lélia Abramo, uma das mais admiráveis atrizes brasileiras de todos os tempos, faria 100 anos em 8 de fevereiro. Deixou-nos em abril de 2004, depois de uma existência profícua vivida intensamente, com profundo amor aos semelhantes e crença inabalável em um mundo melhor e uma sociedade mais justa, solidária e feliz. Filha de imigrantes italianos, Lélia nasceu em São Paulo e foi viver na Itália entre 1938 e 1950. Lá conheceu de perto os horrores do fascismo e a miséria da guerra. Irmã de dois de nossos maiores jornalistas, Cláudio (o maior de sua geração) e Perseu (meu companheiro petista), e de Fúlvio, renomado artista plástico, desde muito cedo ela respirou arte e política, colocando a vida a serviço de suas idéias generosas.
Cumprindo a sina e o destino das grandes mulheres, Lélia Abramo foi muito mais do que dela se poderia esperar. Ao Invés de ter-se acomodado no alto de sua fama, no inegável prestígio angariado ao lado de uma carreira irretocável construída graças ao imenso talento cênico aliado a um caráter admirável, ela foi uma guerreira das melhores causas do povo brasileiro. Gritou quando muitos se calaram. Lutou pela liberdade de expressão nos tempos do obscurantismo e da ditadura. Não se acovardou, não temeu, com a mesma garra com que iluminava os palcos desfilou em passeatas estudantis, lutou pelas diretas, foi companheira solidária e destemida dos que sofriam a opressão do regime totalitário. Que mulher admirável!
Lélia havia comandado a primeira chapa de oposição sindical após o golpe militar de 1964 no sindicato de sua categoria em São Paulo. De forma surpreendente, diante da incredulidade geral, a grande atriz assume a presidência de sua entidade de classe, promove profundas mudanças, enfrenta os patrões e denuncia abusos. Mas paga um preço altíssimo: é ignorada por algumas das principais redes de TV durante muitos anos. Foi uma luta de titãs: de um lado os grandes empresários da comunicação, de outro, uma mulher só. Para Lélia isso não era quase nada. Ou nada, mesmo. Quanto mais dura a parada, mais forte ela se tornava. Minha saudosa companheira era um admirável exército de uma mulher só.
Conheci Lélia em fins dos anos 70, quando juntos participamos da fundação do Partido dos Trabalhadores. Chegado de Goiás, professor da rede pública de ensino e dirigente sindical, olhava admirado para aquela figura de mulher carismática e ao mesmo tempo de impressionante simplicidade. Só a conhecia das telas das TVs, em um sem número de papéis, sempre de destaque, quase sempre dramáticos, encarnando mulheres do povo, mães de família, pessoas comuns e sofridas. E pessoalmente a grande atriz não era muito diferente disso: simples, afável, disponível para o trabalho, absolutamente despojada de qualquer ambição política ou vaidade pessoal.
Já lá se vão mais de três décadas e parece que foi ontem. As imagens continuam vivas e me recordo de Lélia ao lado de Sérgio Buarque de Hollanda e de Mário Pedrosa, entre tantos outros artistas e intelectuais, participando da fundação do PT. Orgulho-me de tê-los conhecido e com eles fundado um partido que mudaria a história do Brasil para melhor.
Ao comemorar seu centenário, com certeza a justa homenagem que podemos prestar à grande artista e corajosa militante das causas populares é recordar seu exemplo luminoso. Colocou seu talento a serviço de ideais generosos, como o genial Picasso nas artes plásticas, exilado na França e combatendo o regime criminoso do ditador Franco em sua Espanha natal. Como Charles Chaplin, o gênio que levou Hitler ao escárnio com sua inigualável sátira do líder nazista em “O Grande Ditador” e depois seria perseguido pelo macarthismo nos anos 50, saindo dos EUA e indo viver na Suiça. Como Mercedes Sosa, a fabulosa artista argentina que usou de seu imenso prestígio internacional para denunciar o regime militar que praticava verdadeiro genocídio em seu país. Como Melina Mercouri, a grande atriz de “Zorba, o grego”, inimiga visceral da ditadura dos coronéis na Grécia e depois brilhante Ministra da Cultura de seu país. Como Vanessa Redgrave, artista célebre que brilhou no cinema e foi tão premiada por suas atuações quanto presente nas lutas sociais dos trabalhadores britânicos. Mas Lélia foi, também, pessoas anônimas, visionárias, guerreiras, empreendedoras, inconformadas, dessas que giram a roda da vida e fazem a história acontecer.
Sem ser uma líder feminista, ela abriu caminho para as mulheres num tempo de imenso preconceito e discriminação machista. Firmou-se pelo talento, impôs-se pela competência, venceu pelo trabalho. Hoje, depois que o partido que ela ajudou a fundar e construir chegou ao poder em 2003 e mudou profundamente as estruturas sociais e econômicas do país, quase 11 milhões de mulheres brasileiras decretaram sua independência econômica e partiram para um empreendimento, seja ele um salão de cabeleireiros ou uma empresa financeira, esteja num bairro da periferia de Goiânia ou na Avenida Paulista. Praticamente metade dos estudantes que chegam às universidades através dos programas iniciados no governo do presidente Lula e continuados no da presidenta Dilma, notadamente o Pro-Uni, são jovens brasileiras, que, no geral, apresentam médias de aprovação altíssimas em todas as faculdades cursadas. Quando Lélia brilhava nos palcos, gritava nas passeatas ou prestava depoimento nos calabouços da ditadura, o Brasil não tinha nenhum ministério ocupado por uma mulher. Hoje, governado pelo partido fundado por Lélia Abramo, nove são as ministras escolhidas por uma presidenta.
O Brasil de hoje, democrático, mais justo e que avança a largos passos para um lugar privilegiado entre as Nações mais desenvolvidas, é fruto da dedicação, da crença e do idealismo de mulheres e de homens que se doaram ao longo de décadas à luta para que pudéssemos chegar até aqui. Lélia Abramo, atriz do povo, brilhou nos palcos e na vida, hoje brilha na história.
(*) Delúbio Soares é professor
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