Delúbio Soares (*)
“A democracia cura, alimenta, educa e salva”
Ulysses Guimarães
Na definição milenar a democracia é o governo do povo, para o povo e pelo povo. Desde a Grécia antiga, quando em praça pública os cidadãos se reuniam para debater os problemas da cidade e traçar seu destino, ela tem prevalecido como a mais refinada e ao mesmo tempo, paradoxalmente, a mais simples das formas de governo. Talvez aí esteja, em sua sutil equação, o mistério da longevidade do melhor dos regimes políticos concebidos pelo homem.
A democracia, porém, tem custado caro aos que lutam por ela e que crêem na perenidade de seus valores. Em todo o mundo a luta entre o bem e o mal pode ser representada entre os que acreditam na pluralidade democrática e os que insistem em subjugar os povos a regimes de força, tanto na ditadura política pura e simples, marcada pela violência e o autoritarismo, quanto na cruel dominação do regime econômico, num capitalismo que quase nunca oferece oportunidades.
Quantos e quantos foram os golpes de estado e retrocessos institucionais que atrasaram processos de evolução política, social e econômica de países de todos os continentes? Centenas! A África, jóia da humanidade em recursos minerais, em beleza natural e riqueza humana, suportou séculos de dominação colonial, desumana exploração econômica, cruentas guerras de libertação e, depois de décadas de conturbados processos políticos regionais, agora parece despontar como terra fértil para a disseminação da democracia e da pluralidade de pensamento, amparada por desenvolvimento notável de sua economia, especialmente nos países da franja austral (Angola, Namíbia, África do Sul e Moçambique), além da Nigéria, Quênia, Tanzânia e outros. Eles tanto souberam aproveitar suas potencialidades naturais (turismo, petróleo, mineração) quanto tiveram a sensibilidade de atrair capitais de todo o mundo, notadamente asiáticos, para financiar o progresso econômico e social, e daí para o fortalecimento de regimes democráticos como o da África do Sul, como para governos socialistas e que operam com grande sucesso processos de abertura democrática e eleições livres, foi um passo.
Na América Latina a luta pela democracia se confunde com a vida de nossa gente. São milhões de homens e de mulheres que se doaram ao longo dos anos na incessante tarefa de consolidar as instituições do jovem continente, a que os colonizadores espanhóis e portugueses, com imensa acuidade, chamaram “o novo mundo”. De Simon Bolívar a San Martin, de Sucre a O’Higgins, de Artigas a Lopez, de Tiradentes a Pedro I, com todos os próceres, eternizados em bronze nas praças das capitais latino-americanas, e nas revoltas populares vivas no coração popular e na memória do tempo, a luta pela libertação antecedeu à pela democracia. Essa foi obra posterior, mas, não menos dura, trabalhosa, sofrida e heróica.
Libertados os países latino-americanos do julgo do dominador europeu, vieram os conflitos internos na luta pelo poder. Caudilhos, ditadores, líderes carismáticos, lideranças revolucionárias e simples representantes das elites locais ou do capital mais descomprometido se alternaram em governos efêmeros, regimes fugazes, marcados pela improvisação ou responsáveis por mudanças tão profundas que causaram rupturas traumáticas e, portanto, inaceitáveis para as grandes potências que mantinham influência decisiva na região. Mas, por detrás de todos os conflitos, de todos os interesses políticos, partidários, sociais e econômicos em jogo, no fundo existia a luta entre os que acreditavam e os que empreendiam cego combate à democracia.
Hoje, num continente marcado por episódios de esquecimento impossível, como a crise institucional que nos levou ao suicídio de Getúlio Vargas, a traumática deposição e morte de Salvador Allende, as ditaduras assassinas da Argentina, Chile e Uruguai, o auto-golpe de Fujimori e sua década autoritária no Peru, a democracia é o maior e mais valioso dos bens da cidadania continental. São milhares de mortos e desaparecidos, histórias deploráveis de abusos aos direitos humanos e revelações de torturas medievais a homens, mulheres e até crianças. Foi esse o preço, o altíssimo preço, que pagamos para que hoje vivêssemos em plenitude democrática, sob a proteção do regime das liberdades individuais e do respeito ao Estado de Direito.
O Brasil fez opção clara e firme pelo regime democrático. Dele não mais iremos nos separar. Existe um elo forte e seguro, inquebrantável e indissolúvel, lastreado pelo voto popular que elege, pelo Congresso Nacional que legisla soberano, pelo Poder Judiciário que não recebe ingerências e cumpre com sua missão constitucional, e o presidente da República é o guardião maior desse sistema perfeito, harmônico, insubstituível e soberano.
O presidente Lula tem dado uma lição de comportamento democrático irretocável, presidindo o país sem rasgos de autoritarismo, olhando por todos, priorizando a questão social, não discriminando as classes, mantendo com o empresariado uma relação de cordialidade e parceria; com a imprensa, uma relação de imensa e respeitosa tolerância; com os adversários, uma relação onde o confronto político não impediu a civilidade no trato. Lula é a encarnação da democracia em nosso país.
Sofremos muito para saber o valor da liberdade e o preço alto da democracia. Freqüentamos os cárceres da ditadura. Os que tiveram a sorte de sair vivos puderam ir às ruas na campanha das “Diretas, Já!” e ver o país redemocratizado. Muitos morreram pela liberdade e pela democracia. Nós viveremos por elas.
(*) Delúbio Soares é professor
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