sábado, 18 de agosto de 2012

ENTREVISTA COM ALEMBERG QUINDINS (Fund. Casa Grande)





   

"O que falta aos meninos do sertão e do Brasil é conteúdo. Quando há conteúdo, há respeito e constância".

Ele acha feliz o mundo em que "ainda cabe lugar pra gente besta". Quando nasceu, já vinha com o caixãozinho encomendado, anjo desnutrido. Vingou. A tia exigiu que levasse o nome do santo milagreiro: Francisco. A mãe gostava do conde da novela. Ficou Francisco Alemberg. Francisco ele dispensou. E agregou Quindins, de uma banda que teve. Podemos chamá-lo Alemberg, ou embaralhar com Chicó, d'O Auto da Compadecida - a risada do personagem de Selton Mello no filme de Guel Arraes é todinha dele, roubada com consentimento.

Ou pode-se ainda confundir com Antônio, de A Máquina - personagem do romance de Adriana Falcão que decide, em vez de ganhar o mundo, trazer o mundo à sua cidade. Foi o que fez. Criou museu, escola de comunicação, teatro, cinema, produtora de vídeo, banda de música, editora, rede de pousadas e até canal de tevê. 

É a Fundação Casa Grande, tocada pela criançada de Nova Olinda, cidade de 12 mil habitantes a 552 quilômetros de Fortaleza. O mundo veio ao interior do Ceará. Não qualquer mundo, mas um que permite à meninada do sertão "encontrar o espaço que lhe cabe", e, assim, "fazer a diferença".


Como começou essa história toda?
Na realidade sou uma criança, sabe? Ainda não fiquei adulto. Todos esses sonhos que fazem parte da Casa Grande são sonhos meus de criança. O primeiro contato que tive com o imaginário da região foi com uma cabocla descendente dos cariris. Ela me contava lendas da Mãe d'Água, da Chapada do Araripe, histórias dos índios, e me levava para a casa dela, onde tinha um índio de madeira que eu sempre queria visitar. Depois minha família mudou para Miranorte, onde hoje é o Tocantins, mas ainda era Goiás. A gente morava num lugar que, de um lado, tinha uma tribo xavante, e do outro, uma xerente. Ficava entre o Araguaia e o Tocantins. A professora olhava no mapa: "Olha, a gente mora mais ou menos aqui." Daí talvez hoje esse espírito da Casa Grande de saber a importância de constar no mapa do País. Em Miranorte, o mundo não era ali. Eu ia para a estrada ver os meninos que vinham de Belém ou Brasília. Ia para me instruir, ver o povo falando do mundo, porque eu mesmo não morava no mundo.

Foi lá que começou a Casa Grande?
De certo modo. Quando eu tinha nove anos, comecei a fazer revistas em quadrinhos de super-heróis. Desenhava em um caderno, depois recortava os desenhos e costurava com linha e agulha, porque não tinha grampeador. Minha referência eram as revistas Tex e Homem Aranha. Mas nem banca de revista tinha por lá. Depois decidi fazer cinema, pegando plástico, fazendo rolo e botando uma lâmpada, mas não conseguia projetar na parede. Até que, um dia, fiz uma experiência no escuro, e vi que a sombra da gente se projetava na parede. Então construí uma caixa de madeira, botei um pano, peguei aqueles bonequinhos que vendem em saquinho, da Guliver, e fiz o cinema de sombras. Fazia os cartazes, a trilha sonora, o roteiro.

E cobrava pelas sessões?
Em palitos de fósforo. Lá em casa eu tinha a alegria de ser o responsável por sustentar a cozinha com fósforo. A entrada custava dez palitos. A meia, cinco.

Meia entrada naquela época?
Era. Na revista que fazia colocava uma página: Seja sócio da editora. A pessoa preenchia, mandava o papelzinho e eu fazia uma carteirinha - desenhava a cara dela como se fosse carteirinha da Editora Bloch. E a pessoa tinha direito a meia entrada.

O que mais você aprontou?
Fiz também com meu irmão um conjuntinho de lata. A gente compunha as músicas e tocava nas festas de miss que as meninas faziam no quintal. Também conseguimos um campinho para jogar futebol. Era o campo-do-pé-de-pequi, porque no meio tinha a árvore. Tinha que ser bom para jogar ali. Foi nessa época que criei a revista Placarzinho. Fazia matérias jornalísticas, pôsteres. Tudo sobre o que acontecia no campinho. Era eu que desenhava. Cada exemplar era único, feito à mão.

Quando você deixou Miranorte?
Em 1985, aos 18 anos. Foi quando comecei a me sentir incomodado. Queria conhecer o mundo. Aí me alistei na Marinha de Guerra - para viajar. Mas me deram um balaio e uma vassoura e passei um ano inteiro varrendo em Natal.

E depois?
Voltei para minha terra. Lembro que, quando cheguei, era de manhãzinha. Fui entrando na Chapada do Araripe. Aquela floresta e, dentro, uma cratera e um monte de cidades. Quando acordei e vi pela janela, tive um impacto: "Ô, rapaz, ou aqui já aconteceu uma coisa muito importante na vida, ou está para acontecer." E, dali em diante, passei a andar nos sítios mitológicos, e a sonhar. Sonhava a noite inteira, andando naqueles sítios como se fossem cidades. Fui resgatar as lendas que ouvia quando criança e fazer uma pesquisa musical. A Chapada é um celeiro em tradição oral. Lugar de contador de história, poeta. Não é à toa que o Cariri tem santo próprio, o Padre Cícero. De um lado, Luiz Gonzaga; de outro, Patativa do Assaré.

A Chapada do Araripe é um sítio arqueológico importante, não?
A Chapada surgiu quando estava havendo a separação dos continentes, do que virou a América e a África. Era uma região de grandes lagos, com dinossauros. Para aquele pterossáurio que aparece no filme do Spielberg, a pesquisa foi feita lá. Foi o primeiro lugar onde surgiram flores no planeta. Era uma região viva, como um vale dos dinos. E aí o mar entrou, com o afastamento das placas tectônicas, e matou a vida de água doce. Os peixes pequenos foram para o fundo do lago, e entrou a vida marinha. Acontece que houve novamente uma movimentação das placas tectônicas, fechando o mar. A região transformou-se em um grande lago hiperssalino. A água, com o tempo, foi baixando, e a vida marinha foi ficando na lama. Ela se transformou nas "pedras de peixe", como chamam lá. São fósseis, como se fosse uma fotografia daquela época, há 150 milhões de anos. Você vê as piabinhas na rocha. No Nordeste houve muitas mudanças, mas a Chapada do Araripe conservou aquele oásis. E, com isso, houve um verdadeiro entroncamento. Era o aeroporto dos bandos de nômades da pré-história. Acredito que isso tenha gerado a cultura do Cariri. Aquele é um dos lugares de maior energia do planeta. A Casa Grande, de certa forma, é um beija-flor que procura sugar essa energia e condensar lá dentro, para passar um pouco para as pessoas.

Como o projeto surgiu?
Quando eu era criança, dizia: "Quando crescer, vou ter meu emprego, casar, ter meus filhos, mas vou construir em minha casa um quarto de brinquedos, com revista em quadrinhos, com tudo o que eu gosto." Esse quarto é a Casa Grande, instituição toda gerenciada por crianças e adolescentes. Em 1992 resolvi colocar lá o acervo que juntamos em nossas pesquisas. E também aquele indiozinho que eu ia visitar na infância. A gente batizou ele por Cariuzinho. Os meninos criaram uma editora e hoje tem o personagem - Cariuzinho é um ser encantado que leva os meninos no tempo, pra visitar a época das lendas.

Quais são as atividades da Fundação?
Temos quatro programas: memória, comunicação, arte e turismo. O programa de memória cuida de resgate da mitologia e arqueologia. Temos o museu e os sítios arqueológicos que a gente protege, orientando os fazendeiros e a comunidade. O programa de comunicação cuida da rádio, da tevê e da editora. O projeto da rádio, em parceria com o Unicef, foi parar em Angola e em Moçambique. A tevê acabou lacrada pela Anatel. Era a primeira tevê totalmente produzida por crianças, elas roteirizavam, filmavam, editavam. A editora cuida de toda a parte visual dos nossos shows - cartaz, ingressos, folders -, do jornal e da revista.


E o programa de arte?
Nele os meninos fazem e estudam cinema. Temos um cineclube com 1.200 títulos. As crianças aprendem a linguagem cinematográfica para produzir. Temos um produto que passa antes de cada sessão. É o Sem Canal - brincadeira com o Canal 100 e com o fato de termos ficado sem nossa tevê. Começa com aquele "ta-tã-tã - ta-rã", música do Canal 100 tocada pelos meninos da nossa bandinha de lata [ Que bonito é..., da música Na Cadência do Samba, de Luís Bandeira]. O Sem Canal tem pessoas falando sobre si e as imagens aparecendo, como se fosse uma autobiografia digital. Os meninos têm ilha de edição para trabalhar. Já estamos autorando em 5.1 surround. Além disso, temos o cinema, que passa filmes para a comunidade em três sessões: infantil, popular e temática. Tem também a parte de música. São dois laboratórios. A iniciação é na bandinha de lata, e há também uma banda de música instrumental, onde fazem jazz misturado com ritmos nossos, nordestinos.

E como surgiu o programa de turismo?
Surgiu porque estávamos recebendo uma média de 3 mil visitantes por mês - estudantes de outros países, pessoas que iam pesquisar. E aí a gente criou umas pousadinhas domiciliares nas casas da comunidade. Bom para todo mundo. Hoje as pessoas vão para Nova Olinda, hospedam-se nas casas das famílias e convivem com elas. É turismo solidário.

Quanto custa a diária?
Sai a 40 reais - com direito a café da manhã, almoço e janta. Oitenta porcento desse dinheiro vão para reposição de material; 10% para a manutenção da cooperativa que a gente criou para trazer os pais das crianças da Casa Grande para dentro da instituição; e 10%, para um fundo de educação para os jovens que passam no vestibular. A gente paga o transporte porque a universidade mais próxima fica a 42 quilômetros, no Crato.

Quantas crianças estão envolvidas em todos esses programas?
São cerca de 70 crianças e jovens. Na verdade, uns 200, mas sempre gosto de tirar para menos. O importante não é a quantidade, é a qualidade. Só no ano passado foram 24.770 pessoas que circularam por lá, usufruindo do espaço, do cinema, do teatro, do parquinho.

Há uma preocupação com a formação profissional?
Na realidade, a escola de comunicação da Casa Grande não é para formar jornalistas. É para que, através da comunicação, eles tenham uma noção da diversidade das formas de ver as coisas. O mesmo acontece com os outros programas. Na Casa Grande não tem músicos, editores. Lá todo o mundo é recepcionista. E o grau mais alto na Fundação é o de bom recepcionista. Estamos lá para receber as pessoas.

Por que a ênfase na comunicação?
Porque a comunicação dos grandes meios vai para o interior e massifica. Não resta o mínimo de possibilidade para uma criança produzir, ser ativa. Ter acesso à produção de comunicação, principalmente na infância, é muito importante para o discernimento, a formação da personalidade. É a base para o desenvolvimento do País. Antigamente existiam os profetas do sertão que diziam como o vento estava vindo, como as árvores estavam brotando. Hoje são as ferramentas de comunicação que dão a noção de por onde as coisas estão andando. Um jovem precisa dominar esse tipo de coisa para saber o que é o mundo.

Nas cidades do interior essa é uma realidade distante, não?
Muito. E existe um enfraquecimento com bolsa para tudo quanto é coisa, para estudar, para nascer, para mamar, para morrer. Isso acaba enfraquecendo o ânimo de ir à luta. As pessoas vivem à custa da aposentadoria de uma avó. A juventude é ligada em novela, não no estudo. Naquelas cidadezinhas, os prédios mais modernos são os motéis. Então é: bebida alcoólica, música de péssima qualidade e motel.

Você crê que o investimento social vem sendo mal direcionado?
O caso da África tem provado que viver eternamente miserável é mais cômodo. Em países como o nosso, para nosso projeto ter dinheiro, preciso dizer que tenho cem candidatas a prostitutas infantis. É a história: Me dê dinheiro, senão vou ser um assaltante. Não se investe na pessoa de bem, mas na pessoa de risco. Isso é um erro. Estamos reproduzindo justamente esse pensamento internacional que é o de investir na miséria.

Dá para ser diferente?
Em primeiro lugar, penso que para ser cidade, em vez de ter tantos mil eleitores, o critério deveria ser assim: você quer ser cidade? A população quer que seja cidade? Então tem que ter estes quesitos: uma biblioteca com tantos mil livros; um teatro nessas condições; um cinema; um hospital assim, assim. Se tiver isso, ganha o título de cidade. E tem de batalhar para ter esse título sempre. Se a biblioteca sucatear, perde o título. Enfim, acho que falta isso para construir conteúdo nos meninos do sertão e do Brasil. O que falta é conteúdo. Quando há conteúdo há respeito e constância.


Você vê isso mudando na Casa Grande?
Uma vez chegou uma turista lá e perguntou a uma das meninas: "Você é uma criança carente?" Ela respondeu:"Todos nós somos carentes. Eu, a senhora...". Na realidade, criança carente é aquela que precisa abastecer a carência dela com consumo. Podemos também falar de migração. Veja só: se Bill Gates viesse morar no Brasil, não seria migração, seria? Vai Chico Anísio morar em São Paulo. É êxodo? Não. Êxodo só acontece se a pessoa for vazia, sem conteúdo. Quando a gente faz a diferença, não existe migração. Daí a importância de se apropriar de conteúdo. O importante na Casa Grande é o menino encontrar o espaço que cabe a ele dentro do mundo. Se ele for pessoa que tem uma bodega, vai ser diferente de todos aqueles outros bodegueiros que não têm conteúdo. Eu digo aos meninos: é importante vocês terem conteúdo até para namorar. Veja minha situação: daqui a dois anos faço 25 anos de casado. E a gente ainda não conversou um nada do que tinha para conversar.

Então o investimento é no namoro...
Não dá para você ser uma pessoa bonita, legal, se não tem o interior legal. O lado de dentro é que resplandece o lado de fora. Acredito que o interior da gente é nossa infância. Os problemas que a gente vê no mundo existem porque os adultos esqueceram o tempo em que foram crianças. Esquecem  os sonhos de criança. Na realidade, acabou a coisa do sagrado. Isso se perdeu. No tempo em que se acreditava em lobisomem, Dona Mariquinha via lobisomem todo dia no quintal. Se perdeu isso. E a realidade hoje é cada vez mais cruel. De certa maneira, a Casa Grande é para mim uma forma disfarçada de brincar de carrinho. Podem dizer: "Mas rapaz, desse tamanho, com gibi?" Uma vez eu vinha para São Paulo lendo um Tex, com outro esperando para ser lido. Uma pessoa de paletó ao meu lado viu que eu tinha um gibi desocupado e disse: "Posso ler? Já colecionei Tex, mas agora não tenho tempo para isso." E eu: "Claro." Ele leu o gibi em um minuto. E provavelmente continuou sem tempo. As pessoas vão cortando seu tempo, terminam perdidas no tempo, porque não deu tempo de fazer o que tinham que fazer.

Você disse que virou marinheiro para viajar o mundo. Foi com a Casa Grande que conseguiu isso?
Para mim é uma diversão vir a São Paulo, viajar para Alemanha, África. Para onde for. Minha mulher, Rosiane, diz: "Mas vai passar esse tanto de tempo dentro de um avião?" Acha ruim. E eu respondo: "Tirei o dia hoje para andar de avião." Todas as vezes que aeromoça passa, eu como, bebo, chupo bala. Faço tudo que tem direito. Feliz do mundo em que ainda cabe lugar para gente besta!



FONTE: http://www.almanaquebrasil.com.br/personalidades-cultura/7476-qo-que-falta-aos-meninos-do-sertao-e-do-brasil-e-conteudo-quando-ha-conteudo-ha-respeito-e-constanciaq.html#.UC1OXjCeHTE.facebook


Tânia Peixoto
"O tempo é o meu lugar, o tempo é minha casa."
(Vitor Ramil)

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